quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Utopia(s)

por Júlia Abreu de Souza e Margô Dalla-Schutte 

Entrevista com Ana Carvalho, portuguesa, casada com Harrie Lemmens tradutor de literatura de língua portuguesa, autor do livro fotografado por Ana, Deus é brasileiro ex tradutora da União Européia em Bruxelas. Fala sete línguas. 
Foto Harrie Lemmens

O poeta e escritor Zuca Sardan, no prefácio de “Deus é Brasileiro” de Harrie Lemmens, compara suas fotos com obras de pintores famosos: “fotos de um concretismo geométrico flagrado nas vistas e cenas cotidianas; de uma maneira inexplicável, ela transforma a realidade com…a própria realidade clicada em flagrante. Manifestação Rodchenko, Kasimir Malenkof ou…num flagrante de manifestação Dali, tal um quadro seu invisível, inserido dentro do quadro visível. Assim, por exemplo, a súbita aparição de Voltaire, não pintado, mas que surge no quadro pintado, um harém em Marrakech. Assim Ana faz aparecer um camelo num muro contra o qual há roupas no varal. E uma torcida em delírio, no perfil de sombras de casas. E há a Ana Fellini, que saca imprevistos significados em cenas e vistas aparentemente normais.
Foto Ana Carvalho
"Tarde ensolarada em Amsterdã. A conversa flui leve e espontânea, com a Ana nos transportando para os diversos mundos em que viveu."
Foto Margô Dalla
Vamos começar pelo começo... Bem, aos 23 anos saí da minha cidade, o Porto e nunca mais voltei a morar lá. Em ordem cronológica, meu percurso foi: Porto, Leipzig, Berlim, Lisboa, Nijmegen(Holanda), Bruxelas, Almere (Holanda). Saí de Portugal em 1975- num momento de euforia revolucionária e em que se falava muito de utopias. Nunca pertenci a um partido político mas participava de movimentos sindicalistas e do Movimento Democrático das Mulheres.
Depois do 25 de abril, Portugal tinha associações de intercâmbio com vários países socialistas e eu ganhei uma bolsa para estudar em Leipzig. Saí, portanto, quando todo o mundo queria ficar.

Então Leipzig foi a descoberta do mundo? 

Foi. Eu queria viver enfim uma vida exclusivamente de estudante. E também queria conhecer o socialismo por dentro. Achava que sem a preocupação material haveria uma grande abertura para o desenvolvimento intelectual e humano. Para uma espécie de paraíso. Minha utopia.
Foto Ana Carvalho
Utopias existem...? 

No início, sim....Leipzig tinha um ambiente extremamente rico com estudantes de vários países, muitos da América do Sul, foi lá que aprendi espanhol. Convivia com os colegas estrangeiros, tínhamos pouco contato com alemães, não se encorajava isso. Levávamos a vida despreocupada de estudante, festas, discussões, reuniões literárias, estudos. Um mundo à parte.

Quanto tempo viveu a sua utopia?

Quando fui para Berlim é que caí na realidade do dia a dia. Não havia paraíso. Os estrangeiros não corriam riscos, mas já alguns alemães, principalmente os mais ligados ao Partido, não podiam ter contato conosco. Morávamos, eu e o Harrie, que conheci lá na agência de tradução onde trabalhávamos os dois, num bloco com um corredor só para estrangeiros. Nos outros andares os apartamentos eram habitados por gente da polícia e do exército e havia um porteiro que escutava tudo o que se passava. O meu filho nascido lá não ia brincar em casa das outras crianças da escolinha porque eram, na maioria, filhos de funcionários do Partido. Na universidade onde eu dava aulas sentia que os colegas, com algumas excepções, evitavam o contato fora das aulas. Via-se que tinham recebido instruções nesse sentido. Um problema fundamental é que não podiam sair para o Ocidente e em Berlim isso era mais evidente do que nas outras cidades. Era “o lado de lá do muro”. Eu ia de vez em quando a Berlim ocidental, mas evitava falar disso com os meus colegas da universidade para não causar mal-estar, pois muitos deles tinham família lá que não podiam visitar. Vivia numa autocensura. Apesar dos benefícios de ordem econômica e social, era um sistema perverso. Desiludi-me. Em 1985 saí da Alemanha e mudei-me para Lisboa.
Foto Ana Carvalho
Já fotograva? 

Sim, mas muito pouco e sem pretensões. Fiz um curso rápido de fotografia, mas me interessava mais o processo de revelação. Adorei a câmara escura, a mágica do aparecimento da foto. Só mais tarde comecei a fotografar como agora, com uma preocupação estética. Custei um pouco a me acostumar à fotografia digital, mas agora não quero outra coisa.

Você faz um pouco de pop arte, de grafismo, cubismo, construtivismo, não? 

As vezes, digo que, mais que fotógrafa, sou uma colecionadora de imagens. Vou andando, olho, paro, capto o momento. Não sou tanto fotógrafa de pessoas, apenas se estão no cenário certo. Prefiro fotografar casas, portas, janelas, paredes, o detalhe em geral, formas geométricas. Tudo tem sua história por trás mas tudo fica em aberto. Só depois quando, por exemplo, para compor uma exposição vou aos meus arquivos e seleciono as fotos, surge um tema ou um título.
Foto Ana Carvalho
E as fotos que fez durante a viagem com Harrie ao Brasil para “Deus é brasileiro”, vocês tinham um plano, combinaram o trajeto? 

Não procuro, encontro- ah, essa é de Picasso rs rs. Não combinamos nada. Ia registrando as imagens que mais me impressionavam ou surpreendiam. O Brasil foi uma descoberta para mim. Tinha os olhos bem abertos e estava mais receptiva do que nunca. Com a minha exposição O Mundo de Lobo Antunes, por exemplo, fui em busca de fotos com o ambiente que eu pressinto nas suas histórias. Ele próprio se surpreendeu, conforme disse, com os diversos mundos dele revelados por mim. Uma ficção fotográfica, sem dúvida.
Foto Ana Carvalho

Livros de Harrie Lemmens em português e holandês com fotos de Ana Carvalho
Gosto da parte gráfica, de formas, geometria, linhas, possibilidade de combinar cores, de soltar-me, manipular dando outra dimensão, gosto de experimentar. Grupos de pessoas na rua, por exemplo, formam para mim uma composição, uma coreografia, o lugar onde estão colocadas faz o enquadramento. Quando vejo um filme vejo logo o enquadramento. Fotografia, alguém disse, é só uma técnica, o que faz a arte é o fotógrafo. Parece óbvio, não? No cinema gosto muito do filme noir, do contraste entre luz e sombra, tipo O Terceiro Homem, de Hitchkok, e também de Wim Wenders, Visconti, coreógrafos da imagem.
Foto Ana Carvalho
Influências e afinidades… 

A minha maior influência foi a pintura. Digo que sou uma pintora fracassada, pois não tenho paciência, gosto de resultados imediatos. Caravaggio: o impacto do vermelho. Entro em uma igreja em Roma, um altar às escuras; um turista coloca uma moeda, a luz acende, o vermelho solta-se do quadro, uma visão, um deslumbramento. Momento decisivo. Cartier Bresson é dos meus favoritos. Tenho mais afinidades com fotógrafos dos anos cinquenta, sessenta. No Brasil, aprecio Geraldo de Barros, Gaspar Gasparian, Thomas Farkas.
Foto Ana Carvalho
E com a revista Zuca você está de volta à literatura?

É projeto nosso- meu e do Harrie- uma revista digital literária que divulga a literatura e poesia de língua portuguesa na Bélgica e na Holanda. Muito gráfica, com minhas fotos. Temos o projeto Desassossego do livro de Fernando Pessoa traduzido por Harrie. Cada fragmento com uma foto minha. Para as frases de Pessoa, que têm uma linguagem bastante abstrata, procuro algo sugestivo. E, em geral, encontro logo o que quero. E assim cá estou eu de novo, ligada à literatura. Zuca vem de Zuca Sardan, pseudônimo de um poeta, desenhista, ex-diplomata brasileiro, Carlos Saldanha, que também serviu na Holanda e agora mora em Hamburgo com sua mulher alemã. É o nosso patrono, a nossa inspiração.
Foto Ana Carvalho
Próximos projetos? 

Bem, como já disse antes, saí de Portugal à procura da utopia. Esta não se realizou, mas o projeto “Utopia(s)”, em colaboração com o escritor Gonçalo Tavares, também muito conhecido no Brasil, já aconteceu. Foi em Portugal, no festival literário de Cascais (FIC). Também fui convidada para fazer de 12 a 16 de outubro uma exposição em Florianópolis no FLIC onde o Harrie vai apresentar o seu livro. Chama-se “Brasileiros” e nela entram como personagens várias pessoas que fotografei nas nossas três viagens pelo Brasil. Tudo partiu de um recente encontro no festival literário Correntes d’Escritas na Póvoa de Varzim (perto do Porto) onde sentei ao lado da catarinense Lelia Nunes, uma pessoa incrível, extremamente acessível, ligada à cultura açoriana, membro da Academia de Letras local. Ela nem sequer chegou a conhecer o Harrie - eu estava sozinha no Festival. Conversamos, enviei minhas fotos, o livro de Harrie, ela gostou, mantivemos correspondência e agora em outubro vamos conhecer Florianópolis. Coisas da vida... é, voltamos ao Brasil, onde temos muitos amigos. Ficamos tempos sem nos ver, mas há uma reaproximação a cada encontro.
Foto Ana Carvalho

Júlia, Ana e Margô em Amsterdã


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