domingo, 19 de julho de 2015

A gente não é muito interessante…



por Margô Dalla-Schutte  Júlia Abreu de Souza

De Ben Moser:

Clarice, Susan e Benjamin Moser. “Clarice eu escolhi. Sontag me escolheu”.  
Benjamin Moser,  38 anos, olhos grandes, azuis, sorridente, Ben, como é chamado, é escritor, historiador, autor de “Clarice, uma biografia”, cativa pela erudição mesclada à simplicidade e à espontaneidade. O respeitado intelectual americano, conhecido como “o missionário da literatura brasileira”, tem um currículo impressionante e fala sete ou oito línguas- quase sem sotaque.
Foto Margô Dalla
Na sua casa do século 17 de Utrecht, cidade pré-medieval no coração da Holanda, Ben Moser nos recebeu para uma entrevista sobre seu novo trabalho que é a biografia de nova-iorquina Susan Sontag, escritora, crítica de arte e ativista dos direitos humanos e, é claro, sobre Clarice Lispector.

Margô, Júlia e Ben 
Há poucos meses, entrevistamos o escritor/tradutor holandês Harrie Lemmens e ele disse que "traduzir é inventar o que já está lá" e para um biógrafo, que através de uma coleção de fatos, escreve e narra as fases da vida de uma pessoa; você acredita que o enfoque, a visão do biógrafo torne o biografado sempre mais interessante?


Claro que sim-, porque a gente não é muito interessante…

 A gente quem?

 Ninguém…nem Susan Sontag, nem Clarice Lispector são interessantes, nem você, nem eu…a gente leva nossas vidas. Vamos ao supermercado, esquecemos de pagar as contas. Podemos fazer coisas interessantes, mas a arte do biógrafo e dar um sentido a uma vida. Isso, na própria vida, ninguém consegue fazer. A vida da gente vai a todas as direções, mas para o leitor, você precisa fazer uma
narrativa-, essa é a diferença.

Então um biógrafo se coloca muito…. 

Eu comparo uma biografia a um retrato de um pintor ou de um fotógrafo.  Tem um programa de televisão holandesa muito legal, eles convidam uma celebridade e trazem três artistas para pintá-los. E cada retrato, feito na mesma hora, da mesma pessoa, nas mesmas condições, é totalmente distinto do outro.

Você acha que o biógrafo é um pouco "voyeur", um pouco "bisbilhoteiro" 

Depende do olhar, depende de como eu coloco a pessoa. Um dos grandes perigos das agências de segurança americanas, o de colecionar absolutamente tudo que a gente fala e pensa e escreve, é que, quando chega a hora de atacar alguém, você pode transformar até a pessoa mais fofa num monstro. Pegando uma frase aqui, um mau humor lá, um ex-namorado ressentido … sem que isso seja a verdade sobre a pessoa. Como numa foto feia: será que a foto verdadeira é sempre a mais feia? E muito mais quando se trata de uma pessoa como Clarice ou a Sontag: sei mesmo tudo sobre elas. Sei coisas horríveis. E vem a pergunta: será que coloco isso tudo dentro? Que impressão quero deixar? Uma impressão honesta, sim. Mas também que explique o porquê do livro. Vou trabalhar anos
em prol de uma pessoa que acho feia ou indigna? Deus me livre!

Foto Margô Dalla
É importante isso…o que você como biógrafo inclui e o que omite-, porque a biografia é um compromisso muito forte.

 Sim. A vida da pessoa está entre as suas mãos. Então você precisa andar com amor, com o mesmo respeito com que você gostaria que algum futuro biógrafo te tratasse. Tem que entender as pessoas, até quando fazem coisas ruins. Todos nós fazemos coisas ruins, todos nós mentimos. Então a pergunta não é essa. Para o biógrafo, como para o romancista ou o psicólogo, a pergunta é: por quê.

Você coloca sua experiência de leitor? O que gosta de ler em uma biografia.

Eu quero que as pessoas fiquem empolgadas, que queiram conhecer mais. Quero levá-las a descobrir uma coisa que amplie a sua vida, não que a "apequene". Com Susan, com Clarice, são obras que nos enriquecem bastante.

 Ben, qual o maior erro que um biógrafo comete?

Interessante, ninguém nunca me perguntou isso. Eu diria que é contar demais. Não saber escolher, tentar botar tudo, falar que na quarta-feira tal ela comia peixe com molho de tomate. Ninguém quer saber disso.

 Cortar palavras...

Sim. Mas falo isso sabendo como é difícil. Para a Sontag, por exemplo, já fiz mais de 500 entrevistas. Tenho material para uma biografia de 18 volumes. E eu quero contar tudo! Mas se fizesse isso ninguém ia ler. Quero estimular as pessoas a ler o meu livro, e depois passar a descobrir a obra.
Foto Margô Dalla
Estávamos pensando, Ben…essa questão de entrevistar as pessoas, a memória das pessoas. Será que elas se lembram? Existe uma subjetividade  em relação ao biografado. Até que ponto isto é confiável?

Não é confiável. Ninguém é confiável! Eu não, você não. Porque tudo tem a ver como o seu olhar, que foco você dá a tal história. Todo mundo tem sua versão. Além disso, muita gente quer ficar parecendo mais inteligente, mais rico, mais bonito do que é. No caso da Clarice, todos queriam ser o seu melhor amigo e diziam: "Ah eu ia passear diariamente com Clarice, etc…" E eu estou lá escutando e sei que não era verdade. Porque depois de entrevistar centenas de pessoas você sabe muito. Não é o fato das pessoas mentirem, porque, de novo, todo mundo mente. É a maneira de mentir é que é interessante. Sobre o quê? Como é que contam a história? Aí que fica interessante.

Então você tem que confiar e depois tirar suas próprias conclusões.

Eu confio sim, mas confio no meu gosto e nas minhas intuições porque são produto de muito trabalho, de anos de leituras, de inúmeras viagens e entrevistas. Confio também no imprevisto. Você sempre parte para uma série de perguntas, e sai depois aprendendo algo totalmente diferente. Por exemplo, agora voltei de Paris onde fui ver Pierre Berger (companheiro deYves Saint Laurent). Ele conhecia uma ex-namorada de Sontag, uma senhora da alta aristocracia francesa, e queria saber mais sobre ela. Mas o que aprendi foi uma outra coisa interessante, que era como se dizia que você era gay naquela época. Perguntei, como é que você diria que tinha um novo namorado? Diria, por exemplo, esse é meu novo amigo? Ele falou que de jeito nenhum. Bastava falar: Esse é Yves. E todo mundo entendia. Explicou os "códigos." E isto explica muito porque a Sontag não se referia as mulheres da vida dela como amantes, mulher, esposa … mas apenas Nicole ou Carlotta ou Irene.

Como é que você começa? Uma editora te contrata ou é um projeto pessoal seu?

Com Clarice, todos os recursos foram meus. Eu banquei todo o projeto por cinco anos, com a esperança de um resultado positivo. Mas sem saber. Porque fiz tudo sem editora, risco total, porque poucos sabiam quem era ela. No Brasil sabiam, mas eu não sou de lá e minha idéia não era de fazer o livro para o Brasil. Pretendia trazer uma parte do Brasil para fora.
Foto Margô Dalla
 E você fez isso. Você se sente realizado?

Muito. Virou quase moda em muitos países ler o meu livro Clarice. Agora estou introduzindo a Clarice na Holanda. Saiu recentemente também na Austrália. A imprensa da Austrália está comentando. E agora acabei a edição dos “Contos completos” em inglês, algo que até no Brasil nunca foi publicada.
Ben Moser com os originais de "Contos de Clarice"
Já a Susan é mais conhecida…

Lá é diferente. Fora do Brasil, Clarice era desconhecida e queria torná-la famosa. Susan era famosa e agora pretendo mostrar até que ponto ela era desconhecida. Que o que você pensa que sabe, não sabe.

Fernando Morais disse que é muito mais difícil escrever a biografia de uma pessoa que está ainda viva; isto porque ele escreveu sobre Paulo Coelho. Como você vê isso?

Acho também muito difícil fazer a biografia de uma pessoa viva. Na vida da Clarice, há uma continuação que se completa na morte. Toda vida tem um começo e um fim, e o fim é muito importante. Conversando com dona Tânia, a irmã de Clarice, perguntei se ela tinha noção da obra que estava deixando para o mundo. Ela ficou muito séria e disse que ela sabia sim. A morte era o encerramento de alguma coisa. Com a Sontag era o contrário. Ela pensava que não prestava, morreu decepcionada.

Tem a ver com ambição, com insatisfação pessoal?

É isso. É a história dessa menina que vou contar no meu livro. Ela era filha de alcoólatra, o que quer dizer que ficou adulta muito jovem, com responsabilidades graves, porque o adulto não tem condições de assumir seu papel. As crianças assumem. E a sensação de nunca estar à altura fica durante a vida toda.

Fazendo uma comparação entre a Clarice e a Sontag…

Clarice era mais inteligente de certa forma, de uma forma artística, não de uma forma intelectual. Ela não tinha lido 5% dos livros que a Sontag havia lido. Não era muito disso. Ela gostava de ficar no Jardim Botânico inventando histórias e pensando sobre o mundo.

Como aconteceu de você escrever sobre duas mulheres brilhantes, de nacionalidades e personalidades diferentes?

 A Clarice eu escolhi. A Sontag me escolheu. Estava no Rio e uma pessoa ligou:"Ben, a gente resolveu que tem que ser você para fazer a Susan Sontag.” Parece que tinha um comitê, o editor, o agente e o filho dela se juntaram para ver quem faria. Eles tinham lido “Clarice" e falaram: "Tem que ser este cara". Peguei um vôo para Nova York. Gostei da idéia e terminei aceitando.

 Em que ponto você está?

Eu já praticamente terminei as pesquisas e as 500 entrevistas, mas ainda tenho que voltar para NY e vou para Paris para falar com o filho dela. Vários dias de entrevista.

Quem te escolheu para fazer Clarice?

Há quem diga que "ela" me escolheu. O espírito dela me escolheu. Quem sabe.

Encerramos esta parte da entrevista: entendemos que as duas mulheres de Ben eram escritoras, judias, fortes, mas enquanto uma sabia o que fazia e a importância do que escrevia, a outra queria sempre mais e mais, em uma tentativa de superar suas próprias inseguranças.
Ben Moser em seu jardim em Utrecht

Júlia e Ben em sua biblioteca de Utrecht
Margô e Ben com a primeira prova do livro "Contos de Clarice"

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Sou paraense, sou papa-chibé!


por Jerusa Nina


Quando desço do avião em Belém, um forte sentimento que me aflora a assim que bato os olhos nos anúncios dos pontos turísticos é: “estou em casa”. Não que o Rio de Janeiro também não seja meu lar. Depois de tantos anos até poderia parecer ingratidão com a cidade maravilhosa, a qual amo de paixão.

Foto Margô Dalla
Belém - Foto Margô Dalla

Acontece que quando chego ao aeroporto da cidade onde nasci e fui criada, tenho a mesma sensação que muitos de nós nutrimos pela casa de nossos pais depois que casamos. Aquele saudosismo que nos dá a certeza de que sempre seremos bem-vindos.

Como todo paraense que vive fora do Pará, morro de saudade da minha comida regional. Sinto falta de degustar um Tacacá bem quente às cinco da tarde, de tomar um açaí com farinha de tapioca logo depois do almoço e de dormir na rede, para completar.

Sinto saudade da maniçoba, do caruru, do vatapá, dos variados sorvetes da Cairu e da pupunha melada na manteiga comida quente com o café com leite da tarde. Não precisa de pão.

Mangal em Belém - Foto Margô Dalla

As garças e flamingos do Mangal - Foto Margô Dalla



E vou além, se fecho os olhos já faço uma lista de todas as maravilhas. Sentir o cheiro da chuva das 15 horas, molhando o asfalto fervente, abrindo alas para o vento da Bahia do Guajará. E ver as garças voando do Mangal para a Praça Batista Campos, passando a poucos metros de nossas janelas em prédios arranha-céu. E todo este espetáculo sob o por do sol maravilhoso em seu tom vermelho amarelado.

Foto Margô Dalla
Até poderia parar por aí, mas como não mencionar os vários túneis de mangueiras centenárias que ladeiam as ruas, dando brilho aos casarões antigos da época áurea da borracha? Como se não bastasse, essas mesmas árvores nos premiam com seus frutos, precipitando suas sortes sobre nossas cabeças. Como catei manga na volta da escola, para comer com farinha d’água em casa...

Belém, a cidade que conta com seu vocabulário próprio, do “égua; te mete, mano; pior que é; vai nessa; tá, cheiroso; só porque tu queres; eras; tu alopras; olha já” e de tantas outras expressões que só quem é da terra vai saber dar a entonação correta nesta leitura. E fico triste por eu mesma já não ter o sotaque genuíno, involuntariamente perdido no meu falar.

Só tem lá, o pastel folheado crocante e quentinho, em forma de triângulo e com generoso recheio de queijo. Só lá, tomei refrigerante em saquinho com canudinho, para que o vendedor cauteloso não tivesse a garrafa de vidro quebrada nas décadas de 80 e 90. E, agora, mais ainda, só lá, vi abacatada (vitamina de abacate) ser vendida em aquários no ver-o-peso. 

Mercado de Ver-o-Peso - Foto Margô Dalla

Aquário mesmo, daqueles de vidro que se criam peixes em casa. Docinho de uva, com a própria fruta envolvida em um creme verde com açúcar que me leva as moedas embora. Casadinho, a parte preta e a parte branca. Sempre refleti sobre quem seria o marido, quem seria a mulher. 

Monteiro Lopes, banhado com Nescau em uma camada doce de trigo assado. Se eu fechar os olhos, consigo sentir o sabor de todos eles. E para trazer no corpo a marca da minha origem, para sobreviver a mais um momento de distância, sempre compro os perfumes, cujas fórmulas me são conterrâneas. A fábrica nem é mais a mesma. Até os nomes dos perfumes mudaram, mas teimo em procurar (e sempre encontro) pelo Matinal e pelo Naturele da antiga Phebo, porque eles me trazem um elo forte da infância: minha bisavó.

As essências do Pará no Mercado de Ver-o-Peso - Foto Margô Dalla

Quando estou em Belém, como de tudo, cheiro de tudo e vejo de tudo. E quando venho embora, fico com a alma repleta de vontade de logo voltar.


Sou paraense, sou papa-chibé.

*Jerusa Nina - é advogada, estudou Música e Direito, acaba de lançar seu livro “ O Piano” pela editora Giostri no Teatro dos 4 –Rio. Faz parte da Roda de Escrevinhadores.


quinta-feira, 7 de maio de 2015

As blogueiras Júlia Abreu de Souza e Margô Dalla - foto Marlio da Silva

Bahia, mon amour!

By Ana-Cristina Palacky

Para aqueles/as que tiveram o privilégio e a graça de terem nascido na Bahia!

Bahia  melosa,   amarga,  agridoce, I love you.
Laranjas suculentas de Cruz das Almas, laranja  de umbigo, laranja-cravo, laranja-lima, laranja-Bahia. O vapor de Cachoeira que há muito deixou de navegar. 
O Paraguaçu morrendo a cada verão. 
Os burrinhos carregando  carvão e  água,  subindo/descendo as ladeiras, de minha infância, em Catú.

Araçás  vermelhos e brancos ,  groselhas,  carambolas,  romãs amores,  pitangas encarnadas,  genipapos,  jaboticabas violetas,  fruta do conde, jaca mole, jaca dura, sapotis, manga rosa, Carlota,  espada e a coleção de bananas – maçã, da terra, da prata, d’água, de São Tomé, nanica. 
Feira de Água de Meninos, nas sexta-feiras, paraíso visual. Trançados das cestas, peneiras, abanadores e bocapius de palha de Cipó, dos tempos das caldas e de lugar de lua- de-mel. Cerâmica vermelha e preta, vaquinhas,  boizinhos, terrinas  de Maragogipinho. Farinha, das mais finas e tapioca  de Nazaré das Farinhas,  pintura  nativa de Didito -  arte de Coqueiros de Nagé.
Areias coloridas das margens da cachoeira de Lençóis, das lagoas do Chapadão, das trilhas verdejantes do Capão, e  do casario de Rio de Contas.
A catinga sêca de  Uauá , o Raso da Catarina, terra rachada, de cactos, umbús, cajás, tamarindos, mangabas e ingás,  por onde passaram  Lampião e  Maria Bonita ,  evocações  futurísticas do Conselheiro.
Rapaduras e  doce  de  buriti de Jacobina.  Tabletes de doce de leite e  compoteiras  de dulcíssima ambrosia. Remanso e Casa Nova dos penitentes ensaguentados  e mal–assombrados no martírio anual da Paixão.
Ilhéus, e a  saga do cacau,  de Gabriela,  cravo, canela, pimenta e cuminho.  Cidade rica que virou pobre.
São João no Recôncavo, fogueiras, fogos, canjicas, munguzás, bolos de puba, milho  e de aipim, pés de moleque, quebra-queixo, cocadinhas ,  quindins,  pamonhas, cuscuz  e licor de maracujá. Fogueiras no largo de Cruz das Almas e  rodopios caipiras ao som do baião.
Flores brancas de manacá. Acácias  rosadas anunciando o verão, lilases do jacarandá. Buquês de rosa-menina para adornar o mais bonito altar da doce Maria.
Reisados de Muritiba. Proscisssões  ibéricas e chorosas do  Encontro e da Paixão, dos padroeiros e padroeiras com mimosos anjinhos em rosa e azul. Novenas de rezas de terço, cantadas e esperadas,  entre as chuvinhas e os aguaçeiros de maio.
Salvador e seus feitiços, Pelourinho e suas artes, de pinturas a capoeira, dos blocos de folia, da benção do Olodum, de ladeiras, becos,  calçadões. De bahianas vestidas de branco em extinção, por desuso ou conversão.
Saudades do luar em Busca Vida, das serestas em Abaeté,clara e escura,onde se trocavam chamegos e  afeições.
Avenida Sete, hoje, camelôs e  animação.  Avenida Sete, você  tem lugar cativo no meu coração.
Restaurante Granada, onde se fazia o melhor cozido da praça, onde o couve, o repolho, a abóbora, a cenoura, o maxixe, a banana da terra, o chuchu e  o quiabo  se confundiam e se abraçavam em gostos e cores na companhia  de  gorduroso pirão.
Os acarajés, abarás,  vatapás,  efós, galinhade xinxim, carurú  de preceito e pedidos a  Cosme, Damião e Doú.
Rua Direita de Santo Antonio, onde passavam em diária procissão, leiteiros, verdureiros, sorveteiros, taboqueiros, baleiros, padeiros, aguadeiros. Rua das janeleiras e da Festa do Espírito Santo. O  bonde passava e espiava o primeiro amor, alto, magro, desengoçado, que se chamava Chicão.
Bahia mestiça,  erudita, metida e artística. De caboclos, pardos, pretos, mulatos, morenos.  Indígena, afro, portuguesa, pintada e matizada. Bahia de todas as cores, que se somaram, multiplicaram,  dividiram e daí  nasceu o bahiano. Da gema e  da clara do ovo.
Bahiano,  impulsivo, assanhado,  violento, crente e descrente,  dançarino,  escritor, orador, poeta e  cantor. Matreiro, festeiro, cabreiro.
Castro Alves,   sonhador,   escreveu em  versos a diáspora  que começou na África , atravessou o Atlântico e terminou na Bahia,  dos  gritos dos porões dos navios negreiros, das  senzalas e da imensa dor da escravidão. Bahia de   tabús,  santos, deuses, deusas, rituais. De crenças únicas e plurais,  sagradas e profanas, de  igrejas e  terreiros que sempre  batem às sextas-feiras.
Bahia injusta com o seu povo, aquele  que se esconde nos morros, nas palafitas aterradas, dos  pipocas do carnaval,  dos sem teto, dos sem terra, dos diferentes, dos esquecidos, dos dissidentes, dos amedrontados, dos maltrapilhos.
Na Bahia desigual,  vi a mais azul das luas azuis,  a  sedução da dança sacro-erótica dos terreiros de candomblé,  os atabaques do Olodum,  o Culto dos Eguns,   cheio de mistério e proibições, o  trio elétrico de Osmar e  Dodó tocando e  a galera cantando e dançando,  o sol laranja-dourado  do Porto da Barra, os torsos tostados mais sensuais do  planeta  e  a doçura morena dos  gestos amorosos.



*Ana-Cristina Palacky, nasceu  em Cruz das Almas e estudou em Salvador ( Bahia), gosta de arte, prosa, poesia e viajar pelo mundo. Burocrata. Atualmente vive em Viena. 
*Fotos Margô Dalla

Copyright 2015, Ana-Cristina Palacky




sábado, 25 de abril de 2015

Imigrar

Crônica poética de Euler Rocha que fala sobre o sentimento de um imigrante.



IMIGRAR

Imigrar é se desapegar.

É se lançar...

É conhecer culturas…

Novas aventuras...

Totalmente desprotegido se jogar ao desconhecido.

É calejar de saudade...

E pedir de caneca, gestos de bondade.

Romper com raízes...

E criar cicatrizes.

É chegar desprevenido a mercê de bandidos.

Confiar no desconhecido que logo te tornas arrependido.

Receber sorrisos e de início acreditar que são verdadeiros abraços...

E mais tarde perceber que são totalmente falsos.

Viver na insegurança de um futuro que de real só há a esperança.

É ir e voltar em eternas despedidas, que te faz refém dar idas e vindas.

É sofrer da Síndrome do Aeroporto, da qual os sintomas passam por dor no peito, taquicardia, lacrimejamento, arrependimento, dúvidas, inseguranças, vontade de ficar, vontade de voltar.

É abraçar os mais velhos na despedida

E não saber se ainda os veremos com vida.

Imigrar para uns é sofrer, para outros é vencer.

Para os que sofrem em demasia, imigrar passa a significar prisão, escravidão.

Vira mesmo uma patologia, uma enfermidade…

Que a cura está no voltar ao seu país, à sua cidade.

Para os que vencem imigrar às vezes é meio dúbio; uma mescla de vitória merecida com a alma dividida.

Não há ao seu redor um amigo de infância…

Não há como partilhar as lembranças de criança.

A pergunta: "Está valendo a pena?" é uma constante neste tema.

Conclusões a parte, imigrar é fazer valer.

Vencendo ou perdendo, é fazer do perder um novo saber.

É ser o ator principal de uma peça apresentada no estrangeiro,

Onde ninguém lhe entende,

Mas você se faz presente.

É formar guetos,

porque é o jeito!

É buscar calor…

É fugir da dor…

E no meio dos novos amigos, até nos sentimos queridos.

Senão morremos de solidão…

Senão vivemos em solidão.

Passamos a ter um sentimento agridoce…

O doce e o salgado se misturam num coração dividido, que sente os dois sabores despendidos.

A vida tem um ponto onde foi bifurcada, onde pegamos o caminho que sai do caminho.

O curso natural é mudado e criamos um novo caminho, onde não ficam pegadas marcadas no chão, porque é um caminho de solo duro, que na maioria das vezes não conseguimos voltar, porque não há pegadas, que indiquem o caminho de volta.

Imigrar é  transpor um oceano de dificuldades …e chegar em uma terra nova com um futuro sem muita especificidade.

Enfim, imigrar é sair de si mesmo, para mais tarde tentar se reencontrar…

É se desacomodar, para mais tarde achar algo mais cômodo…

É buscar um novo mundo e fazer dele o seu próprio mundo.

Com perdas e ganhos…

Com encontros e desencontros…

Tropeçando, caindo e levantando…

E o mais importante, é o não desistir e sim o persistir rumo ao objetivo fixado, ao sonho idealizado.

*Euler Rocha é brasileiro/poeta/dentista e mora em Amsterdã. Esse poema é de 2013.

*Foto arquivo do autor.