Júlia Abreu de Souza
No bonde, duas garotas brasileiras muito jovens, de vozes moduladas e sotaques sulistas, isto é, de articulação clara, érres nítidos e caprichados, comentam a obra de Chico, uma terra ainda incógnita para elas.
-Você sabia que isso era dele? diz a moça da esquerda, e entoa baixinho:
Procurando bem
Todo mundo tem...
Todo mundo tem...
Sala sem mobília
... Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem
... Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem
Só a bailarina que não tem -– a outra faz o refrão.
Bigode de groselha
Calcinha um pouco velha
Ela não tem
Calcinha um pouco velha
Ela não tem
– A Adriana Calcanhoto tem voz de criança!
- Só a bailarina que não tem- entoam as duas rindo.
-Futucando bem...estou pensando no mestrado sobre as mulheres dele. Foi minha mãe que deu a ideia. Mas, cara, como é que a gente transmite o Chico em holandês? Como vou dizer, sem ficar brega: eu vou rasgar meu coração pra costurar o teu?
Ela tira um bloquinho da bolsa e lê algumas anotações:
O olhar de uma mulher faz pouco até de Deus
Mas não engana uma outra mulher
Mas não engana uma outra mulher
-As mulheres são muito diversas: medrosas, duras, românticas, e valentes como as de Atenas. Temos Ritas, Angélicas, Lígias, Carolinas, Genis, Iracemas. Donas de casa, prostitutas, mulheres fatais, mulheres- meninas, estamos todas nas suas letras, uma por uma. Já reparou que muitos temas são: perda,saudade, fuga, traição ... tem uma, bem engraçada, a história de um cara que larga tudo e vai para o Tocantins, lá ele nota que o chefe dos Paritintins está de olho na sua calça lee, fica aflito, liga para a mulher, daí vem um japonês atrás dele...
Ela parece estar relatando o ocorrido com um amigo íntimo.
Depois, tem outra, bastante trágica, de um homem que passa a vida ralando feito louco para depois morrer na contramão atrapalhando o tráfego. Ganhou um prêmio do sindicato. Acho que também foi do período de ditadura. Tem tanta música da época! Dizem que “Angélica”, uma mulher que perde seu filho, foi feita para a estilista Zuzu Angel, o filho dela morreu na ditadura.
Continua a ler:
Em “Joana, a francesa”, ele mistura o francês com o português e as palavras têm sentido nas duas línguas: acorda, acorda, acorda soa como d’accord, de acordo.
- É demais... demais, repete a amiga, com admiração.
- E o que você me diz da Ana de Amsterdã? Da cama, da cana, sacana, fulana.
Li que ele usa a assonância, uma figura de imagem, repetindo os fonemas. Ah, ainda tem a “Barbara”, a mulher do Calabar aquele considerado traidor porque passou para o lado dos holandeses. Na minha tese, esta também entra para ficar. E a Iracema, tão delicada e nostálgica? Ela queria estudar canto lírico lá fora, mas acaba na faxina. Iracema voou para a América... vê um filme de quando em vez, não domina o idioma inglês, lava chão numa casa de chá... Me lembra das brasileiras aqui. É muita mulher, muita
letra! suspira.
Quieta, no banco de trás, sou toda ouvidos, não ouso interromper esta intimista turnê pelo universo do poeta. No bondinho que percorre ruas e canais desta cidade chuvosa do norte europeu, desfilam em carne e osso, à minha frente, todos os personagens de Chico. Uma viagem e tanto à terra brasilis.
Chegando à Estação Central, descemos as três, meditativas e contentes. O sol pode até ter pedido aposentadoria prévia no reino (des)encantado dos Países Baixos, mas pela parte que me toca, o meu dia já está ganho.
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