...perde o assento, quem vai ao mar, perde o lugar, ou quem vai, vai; quem fica, fica! Ou quem vem de longe, vende como quer.
By Júlia Abreu de Souza&Margô Dalla-Schutte
*Mila Vidal Paletti é uma amiga portuguesa muito interessante e inteligente. Mora também em Amsterdã.
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
As folhas das árvores caem em Amsterdã e as ruas ficam de um dourado esverdeado. É final de outubro e a gente publica no "Quem vai ao Vento..." um texto de Vilma Machado. "Vejo a vida com os olhos da alma, sinto a vida a flor da pele, vivo a vida tentando entender a razão do mundo que de razão nada vejo, nada sinto nem prevejo...." Vilma Machado.
Roga-se aos céus
Roga-se aos céus paz
pois ela se perdeu
não na realidade do que se promete
e sim na vida que não se tem
Roga-se aos céus
Roga-se aos céus uma pausa
pois impera a agonia
na realidade daquele que a vida percebeu
Roga-se aos céus uma chance
para quem ainda não percebeu
que a vida não para
e que o tempo
não espera ninguém
Roga-se aos céus o perdão
para si mesmo
pois não existe castigo
e nesta vida tudo é um começar
No bonde, duas garotas brasileiras muito jovens, de vozes moduladas e sotaques sulistas, isto é, de articulação clara, érres nítidos e caprichados, comentam a obra de Chico, uma terra ainda incógnita para elas.
-Você sabia que isso era dele? diz a moça da esquerda, e entoa baixinho:
Procurando bem Todo mundo tem...
Sala sem mobília ... Goteira na vasilha Problema na família Quem não tem
Só a bailarina que não tem -– a outra faz o refrão.
Bigode de groselha Calcinha um pouco velha Ela não tem
– A Adriana Calcanhoto tem voz de criança!
- Só a bailarina que não tem- entoam as duas rindo.
-Futucando bem...estou pensando no mestrado sobre as mulheres dele. Foi minha mãe que deu a ideia. Mas, cara, como é que a gente transmite o Chico em holandês? Como vou dizer, sem ficar brega: eu vou rasgar meu coração pra costurar o teu?
Ela tira um bloquinho da bolsa e lê algumas anotações:
O olhar de uma mulher faz pouco até de Deus Mas não engana uma outra mulher
-As mulheres são muito diversas: medrosas, duras, românticas, e valentes como as de Atenas. Temos Ritas, Angélicas, Lígias, Carolinas, Genis, Iracemas. Donas de casa, prostitutas, mulheres fatais, mulheres- meninas, estamos todas nas suas letras, uma por uma. Já reparou que muitos temas são: perda,saudade, fuga, traição ... tem uma, bem engraçada, a história de um cara que larga tudo e vai para o Tocantins, lá ele nota que o chefe dos Paritintins está de olho na sua calça lee, fica aflito, liga para a mulher, daí vem um japonês atrás dele...
Ela parece estar relatando o ocorrido com um amigo íntimo.
Depois, tem outra, bastante trágica, de um homem que passa a vida ralando feito louco para depois morrer na contramão atrapalhando o tráfego. Ganhou um prêmio do sindicato. Acho que também foi do período de ditadura. Tem tanta música da época! Dizem que “Angélica”, uma mulher que perde seu filho, foi feita para a estilista Zuzu Angel, o filho dela morreu na ditadura.
Continua a ler:
Em “Joana, a francesa”, ele mistura o francês com o português e as palavras têm sentido nas duas línguas: acorda, acorda, acorda soa como d’accord, de acordo.
- É demais... demais, repete a amiga, com admiração.
- E o que você me diz da Ana de Amsterdã? Da cama, da cana, sacana, fulana.
Li que ele usa a assonância, uma figura de imagem, repetindo os fonemas. Ah, ainda tem a “Barbara”, a mulher do Calabar aquele considerado traidor porque passou para o lado dos holandeses. Na minha tese, esta também entra para ficar. E a Iracema, tão delicada e nostálgica? Ela queria estudar canto lírico lá fora, mas acaba na faxina. Iracema voou para a América... vê um filme de quando em vez, não domina o idioma inglês, lava chão numa casa de chá... Me lembra das brasileiras aqui. É muita mulher, muita
letra! suspira.
Quieta, no banco de trás, sou toda ouvidos, não ouso interromper esta intimista turnê pelo universo do poeta. No bondinho que percorre ruas e canais desta cidade chuvosa do norte europeu, desfilam em carne e osso, à minha frente, todos os personagens de Chico. Uma viagem e tanto à terra brasilis.
Chegando à Estação Central, descemos as três, meditativas e contentes. O sol pode até ter pedido aposentadoria prévia no reino (des)encantado dos Países Baixos, mas pela parte que me toca, o meu dia já está ganho.