segunda-feira, 30 de julho de 2012

Chico e suas mulheres no bondinho de Amsterdã

Júlia Abreu de Souza

No bonde, duas garotas brasileiras muito jovens, de vozes moduladas e sotaques sulistas, isto é, de articulação clara, érres nítidos e caprichados, comentam a obra de Chico, uma terra ainda incógnita para elas.
-Você sabia que isso era dele? diz a moça da esquerda, e entoa  baixinho:  
Procurando bem
Todo mundo tem...
 Sala sem mobília
... Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem
Só a bailarina que não tem -– a outra faz o refrão.
Bigode de groselha
Calcinha um pouco velha
Ela não tem

– A Adriana Calcanhoto tem voz de criança!  

- Só a bailarina que não tem- entoam as duas rindo.

-Futucando bem...estou pensando no mestrado sobre as mulheres dele. Foi minha mãe que deu a ideia. Mas, cara, como é que a gente transmite o Chico em holandêsComo vou dizer, sem ficar brega: eu vou rasgar meu coração pra costurar o teu?

Ela tira um bloquinho da bolsa e lê algumas anotações:

O olhar de uma mulher faz pouco até de Deus
Mas não engana uma outra mulher

-As mulheres são muito diversas: medrosas, duras, românticas, e valentes como as de Atenas. Temos  Ritas, Angélicas, Lígias, Carolinas, Genis, Iracemas. Donas de casa, prostitutas, mulheres  fatais, mulheres- meninas, estamos todas nas suas letras, uma por uma. Já reparou que muitos temas são: perda,saudade, fuga, traição  ... tem uma,  bem engraçada, a história de um cara que larga tudo e vai para o Tocantins, lá ele nota que o chefe dos Paritintins está de olho na sua calça lee, fica aflito, liga para a mulher, daí vem um japonês atrás dele...
Ela parece estar relatando o ocorrido com um amigo íntimo.

Depois, tem outra, bastante trágica, de um homem que passa a vida  ralando feito louco para depois morrer na contramão atrapalhando o tráfego. Ganhou um prêmio do sindicato. Acho que também foi do período de ditadura. Tem tanta música da época! Dizem que “Angélica”, uma mulher que perde seu filho, foi feita para a estilista Zuzu Angel, o filho dela morreu na ditadura.
Continua a ler:

Em “Joana, a francesa”, ele mistura o francês com o português e as palavras têm sentido nas duas línguas: acorda, acorda, acorda soa como d’accord, de acordo.


- É demais... demais, repete a amiga, com admiração.

- E o que você me diz da Ana de Amsterdã? Da cama, da cana, sacana, fulana.
Li que ele usa a assonância, uma figura de imagem, repetindo os fonemas. Ah, ainda tem a “Barbara”, a mulher do Calabar aquele considerado traidor porque passou para o lado dos holandeses. Na minha tese, esta também entra para ficar. E a Iracema, tão delicada e nostálgica? Ela queria estudar canto lírico lá fora, mas acaba na faxina. Iracema voou para a América... vê um filme de quando em vez, não domina o idioma inglês, lava chão numa casa de chá...  Me lembra das brasileiras aqui. É muita mulher, muita
letra! suspira.

Quieta, no banco de trás, sou toda ouvidos, não ouso interromper esta intimista turnê pelo universo do poeta. No bondinho que percorre ruas e canais desta cidade chuvosa do norte europeu, desfilam em carne e osso, à minha frente, todos os personagens de Chico. Uma viagem e tanto à terra brasilis.
Chegando à Estação Central, descemos as três, meditativas e contentes. O sol pode até ter pedido aposentadoria prévia no reino (des)encantado dos Países Baixos, mas pela parte que me toca, o meu dia já está ganho.


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